terça-feira, 17 de junho de 2008

Aqui se aprende a defender a Pátria


O ano era o de 1978. Sol escaldante e calor de matar refletido no brilho peculiar do asfalto interno do 25º Batalhão de Caçadores (25º BC), em Teresina, capital do Estado do Piauí. Nesse clima extremamente pouco aprazível, estávamos nós, recrutas pela obrigação legal de se servir o Exército Brasileiro quando se completa os dezoito anos, na base da “ordem unida” e metidos em pesadas fardas, aprendendo a marchar, respeitar os superiores e defender a pátria – aliás, quanto a essa defesa, sua intenção era massificante, pois, no muro alto que delimitava essa caserna, estava escrito, em letras de um tamanho suficiente grande a se notar a uma distância razoável, a seguinte frase: aqui se aprende a defender a Pátria.
Como se sabe, o indivíduo fardado é conhecido geralmente pelo nome de guerra, representado pelo sobrenome (se o prenome for bastante comum) marcado em cima do bolso superior esquerdo da gandola, ou por um número, este, usado geralmente nas chamadas de controle interno feito pelos superiores que, quando gritavam, o recruta devia responder gritando o nome de guerra. Meu primo consagrou-se no meio da recrutada como sendo o soldado 605, mas que, na análise fria do seu físico de 58kg espalhados numa estatura de 1,70m, talvez, com maior critério na seleção dos recrutas, o mesmo pudesse ter sido dispensado por excesso de contingente – assim não foi, e o massacre psicológico durou, exatos, 365 dias.
É bem verdade que o soldado 605, apesar de sua discordância com a metodologia utilizada pelos militares para se “ensinar a defender a Pátria”, principalmente pelo constante apelo às humilhações, ainda assim, ao término de sua obrigação militar de um ano, saiu laureado com o “diploma de honra ao mérito”, título consagrado àqueles recrutas que não tinham cometido nenhum ato de desrespeito ou indisciplina que possibilitasse a imposição de um castigo – em 2008, portanto, trinta anos depois, se perguntassem ao exemplar soldado 605 sobre a utilização do referido diploma, a resposta seria única:
- Serviu-me tanto quanto o título da Rainha da Inglaterra!
Meu primo, soldado 605, costuma lembrar que seu maior sofrimento no exército não foi o físico, apesar de não ser nada prazeroso a “ordem unida” no calor de 40 graus, as marchas de até 56km, as guardas durante vinte quatro horas na guaritas etc, mas, o constante modo humilhante de se fazer valer a hierarquia militar. De lucro mesmo restou somente a habilitação da carteira de motorista, cujo exame não passou de um passeio no jeep militar, em linha reta, num trecho, ida e volta, de 50m – e só!
É fato que freqüentemente nos dirigíamos à zona rural do Município de Caxias (MA), aonde praticávamos o exercício de aprendizagem de acampamento, tiro e sobrevivência. Em um desses dias, por volta do meio-dia, correu o boato de que a Madalena estava em campo:
- Quem?
Perguntou o meu primo.
- A Madalena. Aquela que costuma freqüentar os arredores do quartel em busca de favores íntimos dos que lhe cai na graça...
- Não é possível! Como ela conseguiu chegar aqui, se estamos a 18km distantes de Teresina, praticamente no meio do mato?!
Confessamos coletivamente, eu, meu primo e o resto do pelotão que tomou conhecimento do fato: até hoje não sabemos como a Madalena chegou ao local em que nos encontrávamos, mas chegou, e fez a “festa” daqueles que a encurralaram no mato.
O boato se espalhou, chegou aos ouvidos daqueles que a conheciam, e estes correram mato adentro a procurá-la; encontraram-na e trataram de fechar o acordo, a contra gosto daquela, de como a satisfação pessoal íntima de cada um do pelotão se daria. Ao que nos lembra, éramos, naquele momento, creio, em torno de quinze recrutas, portanto, grupo suficientemente grande para não se chegar ao comum acordo de quem seria o primeiro – por lógico, não houve concordância e instaurou-se o conflito.
Apostando na sorte, ou, quem sabe, no suposto fato de que talvez sua aparência lhe fosse favorável, o soldado 605 apontou a idéia de que a própria Madalena escolhesse seu recruta número um, vale dizer, aquele que “abriria” o caminho para os demais. A par dessa idéia, e sabendo que fora disto somente a força física de todos contra todos poderia impor uma vontade pessoal, enfim, a recrutada assentiu peremptoriamente.
Perfilou-se a recrutada na parte inferior de um dos lados de um pequeno morro, enquanto a Madalena, do alto desse morro, passava a vista sobre a fileira dos recrutas à sua frente; ia e voltava com os olhos sobre a cara suada de cada um e, com um sorriso maroto inicial, apontou:
- É tu.
Escolhido, o soldado 659 subiu o pequeno morro, chegou ao seu cume e desceu até o outro lado, claro, carregando a Madalena... Não se viu ou ouviu absolutamente nada, mas, menos de dois minutos depois, apareceu, mais suado do que nunca, o soldado Campos, e, logo em seguida, a Madalena com seu olhar disposto a escolher outro recruta...
Pensava o soldado 605:
- “Agora é minha vez!”
Na segunda rodada de escolha, a Madalena preteriu o soldado 605 e outros treze, escolhendo, desta feita, o soldado 597, este, malandro por excelência, porém, segundo se soube posteriormente, já era um velho freguês daquela...
Sobe o recruta, a Madalena no cume, descem e escondem-se no outro lado do morro, se divertem e voltam suados...
Nas idas e vindas da Madalena e seus recrutas satisfeitos, morro acima e morro abaixo, morro acima e morro abaixo, criava-se à expectativa de quem seria o próximo... Meu primo, ansioso para subir e descer o morro, ao ser apontado pela Madalena, teve que se contentar em ser apenas o sétimo da vez, o que lhe permitiu usufruir um corpo mais que suado, mais que usado e mais que lubrificado...
A verdade é que a Madalena suportou, agüentou o pelotão inteiro, é claro, sem poder esconder os malefícios causados pelos derradeiros...
Ocorre que o boato da presença da Madalena no acampamento não foi privilégio unicamente dos recrutas, pois os superiores (cabos, sargentos e tenentes) também tomaram conhecimento de tal fato, o que resultou, como castigo aos recrutas, várias sessões extras de exercícios físicos com um rigor nunca visto, a exemplo de polichinelos, apoio de frente, corridas, subidas e descidas de morros, respostas aos gritos das perguntas dos superiores etc, e, diga-se, tudo isto sob um sol de rachar o quengo e após um almoço pífio feito às pressas e em pé...
Pense aí o que uma quenga pode fazer para satisfação dos desejos mais animalescos dos homens, digo, dos recrutas!

FIM