sábado, 27 de setembro de 2008

Un jour dans ma vie


7:15h. O porteiro não me olha e não recebe meu bom dia; abro o portão e saio. Vejo as secretárias domésticas puxando os cachorrinhos das patroas – estas, por certo, “adotam” os animais, mas não assumem as responsabilidades da criação, delegando àquelas. Imagino que algumas secretárias, com o devido “banho de loja”, teriam melhor sorte, o que seria o azar dos porteiros, zeladores, bombeiros etc. Sigo meu caminho com a cautela de olhar para frente, para trás, e concluo não haver ninguém suspeito – é a precaução mínima de uma cidade grande, com todas as suas mazelas e os perigos em cada esquina. No cruzamento observo o trânsito, atravesso a rua e me encontro ao lado de uma escola infantil – penso que logo logo estarei em igual condição dos pais de agora, parando seus carros, descendo com seus filhos e suas mochilas e os entregando à educação privada, pois da pública há muito não se conta e nem se espera muita coisa. Vejo certa pressa das pessoas a pé (às vezes, a minha própria) em direção às suas obrigações, e, no trânsito, os mais apressados ainda, tentam, por falta de educação automobilística, "empurrar" os carros da frente com o dedo na buzina, já então, antecipando a chegada do estresse que o acompanhará no resto do dia. No meio do quarteirão e nas imediações dos locais mais concorridos, com a flanela na mão ou no ombro, sobressai a apropriação privada da via pública – por mais que entenda a situação econômica dessas pessoas, quase sempre me recuso, quando abordado, a bancar, por valor mínimo que seja, a oferta forçada desse tipo de “trabalho”. Continuo meu caminho. Condiciono-me a vê as coisas belas ainda existentes no percurso, a exemplo de um enorme e belo pé de caju, com suas folhas verdíssimas e já com a floração à vista, tempo em que aproveito para imaginá-lo daqui a dois meses, com seus cajus maduros amarelos, quem sabe, vermelhos... Chego ao cruzamento com uma avenida bastante movimentada e, na inexistência de semáforo, apuro meus sentidos para atravessá-la. Percebo um carrinho de venda de tapioca estacionado sobre a calçada, e há concorrência pelo consumo desse produto nordestino – observo o prazer das pessoas em saborear, por um real, um cafezinho com tapioca – é o café da manhã de cada um. Atravesso o cruzamento e, do meu lado direito, vejo um hospital, e imagino as dores, os sentimentos e as tristezas dos que lá se encontram, entretanto, sem descuidar de vislumbrar a alegria daqueles que retornam aos seus lares com saúde. Caminho a passos medidos, sem os medir. Ouço o barulho intenso dos carros e algumas buzinadas, apesar da existência do hospital. Aproveito a sombra imensa de várias árvores semelhantes aos oitizeiros e a brisa fresca que vem do mar, o que ameniza a caminhada de pouco mais de cinco quarteirões. Apraz-me um pouco notar a urbanização arquitetônica recente da cidade, com seus prédios de lojas e apartamentos cada vez mais arrojados, diferenciados e bonitos, diga-se. Percorro mais um quarteirão, me aproximo de outro cruzamento movimentado; espero, fiscalizo a vizinhança (nada suspeito), olho com atenção, meço a distância do carro mais próximo e me aventuro na travessia, sem problemas. O prédio do local de trabalho já está à minha vista, e meu estado de espírito e consciência crítica denotam-lhe o sentido do dia: às vezes, como um local de reputação a se destacar, outras, um simples elefante branco. Ouço o barulho de alguém gritando, assobiando, gesticulando e sinalizando, e, sem maiores dificuldades, o identifico como outro dono de quarteirão a querer “pastorar” os carros, desta feita, com mais afinco, mais propriedade e, com certeza, como mais “dono do pedaço”. Na esquina, alguém se achou no direito de explorar seu próprio meio de vida comercial, sem o patrocínio ou permissão do Poder Público – na bodega “móvel” encontram-se alguns tipos de salgadinhos, de sucos e de refrigerantes, além, claro, do café e do leite, e, ao que parece, existe freguesia fixa. À frente da entrada do prédio, olho o relógio e constato a precisão de minha obrigação, além daquela que me faz ser identificado por um crachá para adentrá-lo. Quando não necessito de dinheiro, vou direto ao elevador, dou bom dia aos colegas e me sinto, sem explicação, um tanto quanto inconfortável relativamente à presença daqueles dentro do elevador. Chego ao quarto andar, abro a porta, dirijo-me à sala de trabalho, não sem antes abrir a pasta da freqüência, procurar meu nome e carimbar: 7:30, 11:30, 13:30, 17:30, rubrica. Confesso: no tempo necessário a fazer esse carimbo, meu mundo gira em torno de perguntas atormentadoras, a exemplo de, por que isto, para que isto, é isto mesmo o que quero, isto farei amanhã novamente,... Sem respostas, acomodo-me à minha mesa. Os colegas chegam e com eles os papos de cada dia. Alguns dos colegas, comedidos; um outro, de alto e bom tom, não se cansa de usar a primeira pessoa para exaltar seus feitos presentes e passados, mas, nem por isto, deixa de ser uma pessoa bastante significante; um outro, esqueço. Passa o tempo, às vezes trabalho, outras, nem tanto...
11:30h. Deu minha hora de almoço. Desço. O desconforto do elevador continua me sendo presente – preferia descer sozinho ou, no máximo, com pessoas com bastante afinidade. Guardo o crachá. Sigo em frente. O cotidiano da rua continua sem muitas alterações, mas noto a pressa acentuada das pessoas, o trânsito intenso e o calor de um sol de 38 graus centígrados, amenizado, na sombra, pela brisa marítima alencarina. Retorno aproveitando as sombras dos prédios e das coberturas improvisadas dos pontos comerciais. A sombra dos oitizeiros refresca meu corpo. O carrinho de tapioca já não se encontra na esquina. Com o porta-malas aberto, um carro apresenta suas variedades alimentares para um almoço rápido e barato, mas sem que se possa comprovar sua qualidade e higiene – é um modus operandi de sobrevivência, fruto da falta de emprego formal. Os flanelinhas continuam alugando as vagas públicas. Na escola infantil os pais esperam a saída dos filhos, estes, pelo lado de dentro da escola, esbanjam energia aos pulos, gritos e brincadeiras. Aperto a sirene, entro.
13:15h. Apesar da preguiça latente, dirijo-me ao segundo tempo do trabalho, sob um sol escaldante. Minha preocupação passa pela minha própria vizinhança, por isso sigo observando os transeuntes das proximidades – nada se apresenta a merecer desconfiança. A escola infantil permanece com sua atividade normal: crianças chegando, brincando, correndo, gritando. O sol é abrasador e o vento, na sombra, é fresco e ameniza. Os flanelinhas agem, se apresentam e esperam um trocado, ainda que não solicitado seus préstimos. O pé de caju me enche os olhos e dá, sob suas folhas, guarida aos transeuntes que retornam ao trabalho. A avenida continua com tráfego intenso, o que requer mais atenção na sua travessia. Atravesso e me vejo caminhando, por pouco mais de cem metros, sob a dádiva das sombras dos oitizeiros. Espero o sinal fechar, mas, algumas vezes, não tenho paciência para tanto, e, correndo, cruzo uma rua, tento desviar do sol apressando o passo e procurando a sombra dos prédios, mais uma vez. Entro por outra rua e avisto o prédio do local de trabalho. Apresso as passadas para atravessar uma rua movimentada, mas os meus olhos estão nos carros vindo em minha direção. Chego do outro lado, são e salvo. O flenelinha “dono” do quarteirão encontra-se abrigado na sombra, à espera de seus “clientes” forçados.
Adorno meu pescoço com o crachá, entro, dirijo-me ao elevador e subo pelo elevador com o mesmo sentimento inconfortável. Aproximo-me da porta da sala de meu trabalho; está trancada, embora com um servidor assistindo televisão pelo lado de dentro; uso minha chave, abro e dou um alô ao servidor. Sento à minha mesa, acesso à internet e vejo as últimas notícias do Brasil e do mundo. Trabalho. Meus colegas chegam, conversam e trabalham também.
17:30h. Enfim, o dia passou. Desligo tudo e sigo o caminho da saída, do elevador, da rua. Já não existe mais o flanelinha agitado, buscando seus “clientes”. Na rua a brisa é fresca, a caminhada, sob esse ponto de vista, é prazerosa, mas continuo, na proximidade da escuridão, a ligar minhas antenas quanto aos transeuntes suspeitos. Percorro a avenida movimentada com a acuidade de sempre. As pessoas parecem cansadas, e os motoristas, por qualquer segundo parado em face do carro da frente, acham que a buzina resolve tudo. O local do carrinho da tapioca deu lugar ao carrinho do “churrasquinho de gato” – nova freguesia circunda o vendedor. Ao passar pela escola infantil imagino que as crianças de hoje, como as de outrora, são o futuro de qualquer país; aproveito para abrir um sorriso para algumas delas, que, ainda com energia, esperam seus pais. Atravesso a última rua, aperto a sirene do prédio, entro e fecho a portão. C’est un jour dans ma vie.