sábado, 4 de dezembro de 2010

Conjunto Ipê II, Buenos Aires

Não, meu caro leitor, eu não vou fazer reminiscências à capital da Argentina, mas ao bairro de Teresina (PI) em que morei num apartamento por quase cinco longos anos, cuja localização encontra-se no fim da linha de quem vai para a zona norte daquela cidade – de lá não se vai a mais lugar nenhum, exceto se o desbravador da região “engatar” uma ré!
À época casado e morando com os pais, mas querendo um espaço privativo para a convivência marital, adquiri o referido apartamento de um então colega do Banco do Estado do Piauí S. A. (BEP) por um preço módico, e o fiz pensando, no mínimo, em possuir um espaço físico que contivesse as condições adequadas para desenvolvimento de uma família.
É certo que era um teto com dois pequenos quartos, uma sala razoável (comparativamente aos quartos), um banheiro social, uma cozinha minúscula ligada a uma dependência e a um banheiro de empregada menores ainda, portanto, fisicamente, era uma moradia que deveria, sem maiores problemas, atender o gosto de qualquer pessoa menos criteriosa.
Ocorre que somente a convivência em seu interior poderia revelar as mazelas de suas entranhas, vale dizer, os problemas do cotidiano de quem vive em condomínio, principalmente em conjuntos habitacionais mal construídos.
Qual foi minha surpresa quando, dias depois da mudança, me vi na necessidade de cuidar do asseio individual noutras residências familiares longe do apartamento de Buenos Aires, pois, abrindo a torneira do chuveiro, nem por milagre a água caía, por razão simples: a água da Agespisa (Água e Esgotos do Piauí S. A.) que vinha da rua não conseguia subir para a caixa d’água do prédio. Para completar a penúria, procurando o síndico para resolver a pendenga, tive a informação de que o condomínio encontrava-se acéfalo – foi um passo forçado para minha primeira e única experiência de administrador de condomínio!
Num ato de desespero impensável, e para evitar andar com uma lata na cabeça pegando água onde ela existisse fora do prédio, resolvi assumir as funções de administrador do condomínio como síndico; ação imediata foi construir uma cisterna na entrada do prédio e adquirir uma bomba submersa, para que a mesma fizesse a função de levar a água da cisterna para a caixa d’água do condomínio – o sucesso foi imediato, mas de certa forma, continuou a mazela, mais espaçosamente, pois o problema retornava quando a bomba apresentava algum defeito e tínhamos que retirá-la para levar ao conserto, o que demorava algum tempo.
Construído sem qualquer qualidade, o condomínio Ipê II revelava seus defeitos a cada dia que o tempo passava, e o meu apartamento não era diferente. Um desses defeitos era a precariedade das instalações hidráulicas e sanitárias, e o exemplo disso foi um pinga pinga proveniente do banheiro social de cima do nosso apartamento; lembro que toda vez que esse banheiro era usado, o nosso ficava interditado em face do fedor que exalava, e isto durava dias – só com muito esforço conseguimos resolver o problema com a anuência da vizinha de cima.
Por conta da falta d’água constante, lembro-me de uma cena folclórica patrocinada por meu vizinho da porta de frente. Chicão, um trabalhador bon vivant, motoqueiro, gente boa e apreciador contumaz da cannabis, um dia, chegando por volta das oito horas da noite, um pouco lombrado, resolveu, como era normal, tomar aquele banho, mas, desenganado pela inexistência de uma gota sequer de água no chuveiro, desceu com um balde na mão para pegar água na torneira que existia na entrada do prédio; ao encontrá-lo esperando o balde encher, interroguei-o:
- E aí, Chicão, tudo bem?
- Tudo bem é uma porra! Como pode um trabalhador voltar para casa, tentar um banho e porra nenhuma de água! Isto sim é que falta de respeito com uma pessoa, e não simplesmente deixar de se pagar o condomínio.
Relembro que eu era o síndico, mas nem por isso me senti ofendido, pois, no fundo, ainda que tenha me esforçado para a água não faltar, a verdade é que ela faltou, para mim e também para o Chicão! Já no meu apartamento, comentei o fato com minha então esposa, e foi uma risada só, pois ela conhecia o jeitão do Chicão.
Como relatei anteriormente, o Chicão era acostumado a “dar um pau na macaca” e, mesmo contrariando sua namorada, ele persistia em usar e abusar da “erva”. Um determinado dia, após uma noite barulhenta, encontrei o Chicão na saída de seu apartamento e observei que ele apresentava várias manchas escuras nos seus braços e pescoço; indaguei o que havia acontecido, ao que ele respondeu ter caído da cama. Não achei muito convincente, o que se revelou pertinente quando, minutos depois, encontramos com a namorada dele saindo do apartamento, e, em conversa amistosa, perguntamos para ela que barulho horrível fora aquele da noite passada – ela, sem cerimônia, revelou que aproveitava quando o Chicão estava lombrado para dar-lhe uma surra com auxílio de um chinelo, cinturão ou qualquer coisa que servisse para tal intento... Bem, concluímos que o Chicão não caiu da cama, mas a própria casa havia caído em cima dele!
Em frente ao nosso prédio existia um outro do mesmo jeito e tamanho, e que tinha em comum, além da aparência decaída, o fato de as entradas situarem uma de frente da outra, portanto, o que facilitava uma amizade de condôminos. Desse prédio vizinho destaco uma moradora que, apesar de ser bibliotecária, portanto, de nível superior, e funcionária pública estadual, quando do censo que fechou a década de oitenta, simplesmente se negou a abrir a porta de seu apartamento ao recenseador porque desconfiava que o Collor de Mello pretendesse diminuir seu salário! Por mais que eu tenha tentado convencê-la do contrário, passei em branco, e ela não entrou na população brasileira daquela década.
Como esquecer a cena mais estarrecedora que já presenciei na vida! Qual? Da janela do segundo andar do meu apartamento, num final de tarde, ao olhar para uma área existente entre dois outros prédios vizinhos, vi (e quase não acreditei) duas crianças, de idades entre cinco e seis anos, praticando a felação – e o pior, como conhecia uma delas e seus pais, tive, com muito jeito, de fazer a ingrata e deprimente comunicação ao pai do que havia presenciado. Este, polidamente, mas com um sorriso amarelo a descolorir seu rosto moreno, resignou-se a agradecer e, no meu imaginário, ficando as expectativas das devidas correções.
Mas a pior visão do prédio não era a da sua aparência externa nem da sua entrada (na época das chuvas tínhamos que praticamente subir pelas paredes para não pisar no lamaçal que se formava na sua porta única); é que ao lado existia um campo de futebol, onde joguei várias vezes quando solteiro, mas que, de lá, olhando-se para os prédios do Condomínio Ipê II, a visão era de deprimir: nas suas janelas formavam-se um verdadeiro varal coletivo, fotografia perfeita de um cortiço!
Particularmente, não sei o que foi pior, se residir num apartamento com tantos problemas, ou, mesmo assim, aproveitando a calada da noite para dormir em suas dependências (calma, diga-se), voltar o pensamento constante para o exercício massificante, como caixa bancário do BEP, nos dias seguintes. Difícil definir qual a pior escolha.