sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Madalena P



38, um revólver velho. Munição: duas balas, idem.
29 anos, loiríssima, esguia, lábios quase carnudos, e que com cheirinho importado, salto alto e batom vermelho provocaria mais atenção, dos homens mais - bonita, diga-se, mas sem maturidade: Madalena P.
32 anos, funcionário público estadual dedicado, estudioso, visionário, sem maiores predicados e com uma paixão mórbida que escurece suas possibilidades: Raimundo Antônio, RA.
Pequena, interiorana, temperatura beirando os 17 graus centígrados, portanto, propícia ao acasalamento, e onde as pessoas usam as calçadas para prosear o dia-a-dia, multiplicando os efeitos do que ouvem e do que veem, sem cerimônia, o boato: uma cidadezinha qualquer.
Confidente casual, sem problemas psicológicos, quando demandado a filosofar ou a aconselhar não conhece o eufemismo das palavras, avalia o futuro próximo, com os próximos: meu primo.
O modernismo contemporâneo permite RA dividir o mesmo teto com Madalena P, e dizem que se amam...
Um fato, ou quase fato, pois as calçadas propagaram uma porta entreaberta, por onde um terceiro adentrou no frio do dia, e Madalena P não gritou.
As calçadas replicaram mais um fato noutro dia, o mesmo terceiro, menos mal...
Demandado, meu primo sentencia:
– Afaste-te, ainda é tempo, sem demora.
Acossada num canto, Madalena P não negou, mas com encanto convenceu RA a acreditar num invisível “cinto de castidade” daí em diante; ele capitulou.
No três em um do canto do quarto, Madalena P fez suas as palavras de Chico Buarque e Francis Hime:

"Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei, eu te estranhei

Me debrucei sobre teu corpo e duvidei

E me arrastei e te arranhei

E me agarrei nos teus cabelos

Nos teu peito, teu pijama

Nos teus pés ao pé da cama

Sem carinho, sem coberta"

Raimundo Antônio não viu ou sentiu a noite passar, e nesta noite da confissão e do convencimento o amor transbordou, e assim, o seu nirvana particular.
Tempo de amor o que decorreu sem se ouvir as vozes das calçadas, ou sem querer percebê-las com os ouvidos de um tísico.
Os fartos ventos das calçadas, bem ao contrário, atiçaram o calor de RA, que, de mãos para trás e comedido a remediar sua honra, encostou Madalena no canto: quantas vezes mais?
Cabisbaixa, um gesto forçado com dois dedos em símbolo de “V” e um olhar choroso foram tudo que Madalena encenou ajoelhada, cheia de pieguismo.
No átimo de tempo seguinte, por um instante secular, Raimundo Antônio inteirou-se do passado vivido mas não suficientemente observado:
– Ban...
Restou um revólver, velho, repita-se, e uma bala, idem: a outra, alojou-se no coração de RA.
A convivência marital já não mais necessita de papel, e Madalena P conforma-se com o espólio e os frutos mensais do porvir.
A tempo, já não era sem, o terceiro começou a sentir as vozes das calçadas: foi o quarto? não! o quinto, quem sabe!
E meu primo? Não, não tinha mais amigo para aconselhar, e limitou-se a ouvir as vozes das calçadas...
FIM